10/04/2023

Investigação denuncia a ligação entre produção de colagénio e violência contra indígenas



Nota do blogue: em 2021 fiz um pequeno artigo sobre a ineficácia do colagénio enquanto produto ingerido ou aplicado. Não me debrucei tanto sobre a crueldade animal, visto acreditar não ser necessário fazê-lo quando já a expus por diversas vezes noutros textos.
Há uns dias, deparei-me com esta reportagem sobre a conexão sórdida entre o colagénio e a desflorestação da Amazónia, bem como a violência cometida contra as comunidades indígenas que tanto lutam para a proteger. No nosso dia-a-dia, mesmo não vendo, mesmo não sabendo, produtos aparentemente inofensivos escondem uma teia hedionda de atrocidades. Atrocidades contra animais, contra a natureza, contra os próprios humanos. Atrocidades que, camufladas por um véu entorpecedor, unem-se num abraço grotesco carregado de dor, sangue e lágrimas.
Por esse motivo decidi pegar nesta investigação e traduzi-la. Porque precisamos de ver.
Precisamos de saber.
Precisamos de mudar.


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O mau cheiro chega antes dos camiões, que estão carregados com peles que foram arrancadas de carcaças de gado dias atrás. As moscas estão por toda a parte.

Os camiões vão para Amparo, uma pequena cidade industrial do estado de São Paulo, sudeste do Brasil. Aí, a Rousselot, uma empresa que pertence à texana Darling Ingredients, extrai o colagénio – um ingrediente presente em suplementos de saúde e que está no centro de uma mania global de bem-estar.

Mas, enquanto os consumidores mais entusiasmados do colagénio afirmam que essa proteína pode melhorar cabelo, pele, unhas e articulações, por retardar o processo de envelhecimento, a mesma tem um efeito questionável na saúde do planeta. O colagénio pode ser extraído da pele dos peixes, porcos e gado, mas por detrás da popular variedade “bovina”, em particular, existe uma indústria sombria que impulsiona a destruição de florestas tropicais e alimenta a violência e os abusos dos direitos humanos na Amazónia brasileira.

Uma investigação da Bureau of Investigative Journalism, The Guardian, ITV e O Joio e O Trigo, descobriu que [a criação de] dezenas de milhares de bovinos criados em fazendas, que estão a destruir as florestas tropicais, foram processados em matadouros ligados a cadeias internacionais de fornecimento de colagénio.



Parte desse colagénio leva-nos à Vital Proteins, propriedade da Nestlé e grande produtora de suplementos do supracitado. A Vital Proteins é vendida à escala mundial – incluindo online na Amazon, nas lojas Walmart nos EUA, na Holland & Barrett e na Boots no Reino Unido e na Costco em ambos os países.

A investigação – a primeira a correlacionar o colagénio de origem bovina com a perda de florestas tropicais e a violência contra os povos indígenas – encontrou, pelo menos, 2,600 quilómetros quadrados de desmatamento ligados às cadeias de suprimentos de duas operações de colagénio no Brasil, ambas relacionadas com a Darling: a Rousselot e a Gelnex, adquiridas pela Darling por 1,2 mil milhões de dólares americanos. Não está claro o quanto desse desmatamento, que foi calculado pelo Center for Climate Crime Analysis, está ligado à Vital Proteins.

Especialistas encaram a preservação da Amazónia como a chave para enfrentar as mudanças climáticas. Da mesma forma, defendem os direitos dos seus povos indígenas, amplamente reconhecidos como os melhores guardiões da floresta. Quase metade das áreas mais bem preservadas da floresta tropical está dentro dos territórios destes povos.

Como resposta aos seus consumidores, depois que o TBIJ abordou os revendedores para fazerem comentários sobre tal, a Vital Proteins declarou que “acabaria com o fornecimento da região amazónica imediatamente”.

A Darling Ingredients disse ao TBIJ que a empresa e a sua subsidiária, Rousselot, monitorizam os seus fornecedores e excluem aqueles que não atendem aos seus critérios de fornecimento responsável. Um porta-voz acrescentou que as empresas “desempenham um papel crucial” na “recolha e reaproveitamento de subprodutos animais que, de outra forma, seriam descartados”. Ele alegou que não poderia comentar sobre a Gelnex, já que a sua aquisição, em Outubro de 2022, ainda não foi formalizada.

A Holland & Barrett referiu que está comprometida com o fornecimento responsável, para garantir que as cadeias de suprimentos não contribuam para o desmatamento. A empresa acrescentou que sobrelevou estas alegações com a Vital Proteins e que levará em consideração uma acção correctiva caso novas violações de política sejam encontradas.

Um porta-voz da Boots disse: “Estamos em contacto com os nossos fornecedores para ter garantias sobre o fornecimento do colagénio”.

A Costco frisou que levou as alegações a sério e entrou com contacto com os seus fornecedores. A Walmart e a Amazon recusaram-se a comentar.


O mito do subproduto

O colagénio bovino é um dos chamados subprodutos da pecuária, o que no Brasil corresponde a 80% de toda a perda da floresta amazónica.

Todavia, subproduto é um termo enganoso, de acordo com a Environmental Investigation Agency, um grupo de defesa ambiental com sede em Londres. “Não chamaria nenhum deles de subprodutos. As margens para a indústria da carne são bastante estreitas, pelo que todas as partes vendáveis do animal são incorporadas ao modelo de negócios”, disse Rick Jacobsen, gerente da política de comoditizações da EIA.

Os produtos sem carne [com outras substâncias de origem animal] correspondem a pouco menos da metade do peso de uma vaca abatida e podem gerar até um quarto da renda dos frigoríficos, de acordo com as estimativas da Bain & Company, um grupo de pesquisa de mercado. De longe, os subprodutos mais valiosos são as peles do gado usadas para fazer couro e colagénio.

Estima-se que a indústria do colagénio, como um todo, tenha o valor de 4 mil milhões de dólares [americanos] por ano.



Ao contrário da carne bovina, soja, óleo de palma e outras comoditizações alimentares importantes, o colagénio não é coberto pela futura legislação de devida diligência na União Europeia e no Reino Unido, projectada para combater o desmatamento. As empresas de colagénio, portanto, não têm obrigação de rastrear os seus próprios impactos ambientais.

“É importante assegurar que esse tipo de regulamentação abranja todos os principais produtos que possam estar ligados ao desmatamento”, asseverou Jacobsen.

A maior parte da desflorestação causada pela pecuária pode ser atribuída a fornecedores indirectos das empresas, segundo Ricardo Negrini, promotor federal do estado do Pará, Brasil, que supervisiona os compromissos climáticos dos processadores de carne bovina. O gado é frequentemente transferido de fazenda para fazenda, passando por diversos estágios de criação, pelo que uma vaca nascida em terras desmatadas pode ser engordada para abate numa fazenda de terminação limpa. Contudo, Negrini disse que, actualmente, todos os frigoríficos têm capacidade de rastrear o gado que compram.

Legislação para combater o desmatamento ligado à pecuária não leva em consideração o colagénio


Com o aumento das vendas de carne bovina, couro e colagénio, mais e mais florestas foram derrubadas e substituídas por pastagens nos últimos anos, com terras muitas vezes confiscadas ilegalmente. A virtual impunidade para a grilagem de terras durante o governo Bolsonaro também alimentou ataques a comunidades tradicionais. Em 2021, no terceiro ano da sua presidência, ocorreram 305 invasões contra terras indígenas. Foi três vezes mais do que os números relatados, em 2018, pelo Conselho Indigenista Missionário da Igreja Católica.

“Não há expansão da pecuária na Amazónia sem violência”, disse Bruno Malheiro, geógrafo e professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará.

A uma curta distância do escritório de Malheiro em Marabá, município com o terceiro maior rebanho bovino do Brasil, a paisagem é aplainada por pastagens. Camiões transportam gado constantemente para os inúmeros matadouros da região.

No município vizinho de Bom Jesus do Tocantins, uma placa verde pontilhada de balas fica ao lado da estrada que leva ao território indígena Mãe Maria. Vista de cima, esta terra, lar do povo Gavião, é uma parcela verde-escura de floresta tropical debruçada numa colcha de retalhos de fazendas.


Para Kátia Silene Akrãtikatêjê, a primeira mulher líder do povo Gavião, é como viver numa ilha. O seu povo sente-se “cercado, sufocado”, disse ela ao TBIJ. A reserva Mãe Maria é o único território em centenas de quilómetros que ainda se assemelha à imponente floresta amazónica.

Malheiro chama-lhe de “um processo de confinamento territorial”. Para os Gavião, a manutenção da mata onde caçam, pescam, cultivam e recolhem sementes vem com ameaças, tentativas de invasão e incêndio criminoso.

Em Setembro do ano passado, uma vila inteira foi incendiada: uma escola, dezenas de casas e um pedaço de floresta foram reduzidos a cinzas. O incêndio não foi acidental, abonam eles, e a comunidade continua a viver com medo.

“[Os fazendeiros] destroem o que é deles e invadem o que é nosso. Não entendo porque destroem tudo”, indagou a líder indígena.

De acordo com José Batista Afonso, advogado e defensor dos direitos fundiários, trabalhador na Comissão Pastoral da Terra em Marabá, a região oferece um vislumbre de como seria toda a Amazónia caso a pecuária continuasse a se expandir sem controlo.


Cadeias obscuras de suprimentos

As cadeias de abastecimento de colagénio bovino são altamente intrincadas, com inúmeros intermediários envolvidos na aquisição e no processamento.

O colagénio Peptan da Rousselot é a marca líder mundial e exporta o referido para os EUA e Europa, onde possui várias fábricas.

A Rousselot obtém peles de vaca da BluBrasil, um curtume localizado dentro de um complexo em Bataguassu, Mato Grosso do Sul. Tal complexo é da propriedade da Marfrig, uma das três grandes empresas de carne bovina do Brasil. Fornecedores de gado da Marfrig têm sido ligados à destruição de florestas tropicais e a invasões territoriais do povo indígena Guarani Kaoiwá.

Em 2021, a usina comprou animais da fazenda Campanário, uma grande propriedade que viola o território Guarani Kaoiwá em Laguna Carapã, também no Mato Grosso do Sul. A área é conhecida pelo seu elevado índice de violência contra indígenas. A Marfrig contou ao Bureau que apenas uma pequena parte da propriedade está em cima da terra ancestral, que a empresa afirma não ser totalmente reconhecida como território indígena. O proprietário da fazenda Campanário não respondeu ao pedido do Bureau para comentar. A BluBrasil também não.

Um relatório da Greenpeace de 2021 também descobriu que a mesma fábrica da Marfrig estava ligada à destruição do Pantanal, outro bioma brasileiro e berço da biodiversidade.

A Marfrig confirmou que o fornecedor em questão estava registado como fornecedor indirecto, mas afiançou que o mesmo se encontrava em conformidade com as suas políticas na época. A empresa acrescentou que a monitorização de fornecedores indirectos é “um dos maiores desafios da cadeia pecuária brasileira”, mas que trabalha “incansavelmente para mitigar qualquer vínculo entre o desmatamento ilegal e outras irregularidades na sua cadeia produtiva, tanto na Amazónia quanto nos demais biomas”.

A Gelnex, por sua vez, vende colagénio para produtos de saúde, ingredientes alimentícios, entre outros items, globalmente. Obtém peles de gado da Durlicouros, um fabricante de couro brasileiro que as limpa e descarna após o abate. Nesta fase, as peles cruas são tratadas para evitar o apodrecimento antes que as camadas de pele sejam divididas em cadeias separadas de produção de couro e colagénio.


Lote de gado num matadouro da Minerva, em Araguaína. Centenas de bovinos abatidos aqui são criados em fazendas que invadem a Mãe Maria e outras terras indígenas.

A Durlicouros obtém as suas peles de gado abatido nos matadouros da JBS e da Minerva, de acordo com várias entrevistas efectuadas a camionistas e outras fontes locais. Centenas desse gado são criadas em fazendas que invadem a Mãe Maria e outras terras indígenas.

Num contacto recente com os investidores, o CEO da Darling Ingredients, Randall C. Stuewe, afirmou que a aquisição da Gelnex aumentaria enormemente a produção de colagénio da empresa.

A Gelnex declarou ao TBIJ: “Todas as matérias-primas utilizadas pela empresa são provenientes de fornecedores aprovados, devidamente registados perante os órgãos reguladores aplicáveis e legalmente autorizados a operar de acordo com as leis vigentes”.

O curtume DurliCouros informou que “atende aos mais rígidos padrões de sustentabilidade nacionais e internacionais”. Tanto a Durlicouros como a BluBrasil receberam a classificação ouro da Leather Working Group (LWG), associação do sector que avalia a sustentabilidade dos membros. A LWG disse ao Bureau que este é um “tópico complexo” e que trabalhará por um padrão “100% de desmatamento e conversão livre até 2030 ou antes”.

A JBS referiu que, embora existisse desmatamento em algumas das fazendas identificadas, as suas compras eram “totalmente compatíveis” com os seus protocolos de aquisição e monitorização, além de que outras aderiram aos seus padrões.

O terceiro maior frigorífico brasileiro, o Minerva, frisou que trabalha para garantir que o gado adquirido não seja proveniente de propriedades com áreas ilegalmente desflorestadas, adicionando que vigia “100% dos fornecedores directos”.

A Nestlé disse que as alegações levantadas não correspondem ao seu compromisso com o fornecimento responsável e contactou o seu fornecedor para o assunto ser investigado. Também anunciou que está a tomar medidas para garantir que os seus produtos sejam livres de desmatamento até 2025.


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Uma versão desta investigação também surgiu no UOL.

Imagem principal: Kátia Silene Akrãtikatêjê, líder do povo Gavião

Repórteres: Elisângela Mendonça, Andrew Wasley e Fábio Zuker
Colaborador: Centro de Análise de Crimes Climáticos
Filmagem e fotografia: Cícero Pedrosa Neto
Produtora de vídeo e produtora de impacto: Grace Murray
Editor de vídeo: Oliver Kemp
Animação: Jules Bartl
Editor de ambiente: Robert Soutar
Editor global: James Ball
Editor: Meirion Jones
Produção: Frankie Goodway
Verificador de factos: Alice Milliken`

Esta história foi produzida com o apoio da Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center. O nosso projeto Food and Farming é parcialmente financiado pela Quadrature Climate Foundation e parcialmente pela Hollick Family Foundation. Nenhum dos nossos financiadores tem qualquer influência sobre as nossas decisões ou resultados editoriais.