Uma das coisas que mais adoro nesta rubrica é a possibilidade que me dá de conhecer mulheres fantásticas: a Ana Laura é uma delas. Mãe e activista vegana e feminista, a Ana luta por uma maior visibilidade das mães e crianças em ambas as militâncias, que, infelizmente, continuam a ignorar bastante a existência delas. Defende que conflitos comuns, como familiares e escolas não aceitarem ou não respeitarem a educação e a alimentação que os pais dão à sua criança, devam ser vistos como um problema colectivo e não individual. Aliás, foi precisamente quando se começou a ver essa pauta como um problema colectivo que em Portugal, finalmente, passou a ser lei que todas as cantinas públicas incluíssem uma opção totalmente vegetal (se bem que ainda há muito trabalho a fazer).
Além de pertinente e necessário, o seu posicionamento levanta muitas bandeiras que tanto o veganismo como o feminismo devem enxergar e acolher, pelo que não podia ficar de fora desta entrevista, juntamente com as suas experiências e vivências enquanto mãe. Acredito que as suas palavras encorajadoras inspirarão várias mulheres e mães a encontrarem a sua voz e a não ficarem (mais) caladas.
Fala um bocadinho de ti.
Sou Ana Laura, nasci e moro no Brasil, tenho 41 anos e fui mãe aos 35. Me formei em Pedagogia e trabalho com Educação Infantil há quase 20 anos. Sou defensora da Escola Pública e militante feminista – faço parte do Movimento de Promotoras Legais Populares (um projeto que capacita mulheres através de um curso de educação popular, acerca de seus direitos, como acesso à justiça, serviços e políticas públicas). Participo do coletivo vegano OVELHA, que é um coletivo de uma cidade próxima à cidade onde eu moro. Mas estamos organizando um coletivo aqui na minha cidade também.
Quando te tornaste vegana? Quais foram os motivos principais?
Durante a adolescência comecei a frequentar espaços do hardcore/punk e foi dentro desses espaços que tive acesso a informações sobre o assunto, através de bandas que falam de veganismo. Parei de comer carne aos 19 anos e aos 22 me tornei vegana. Nesses 3 anos de transição tive dificuldades para conseguir deixar de consumir leite e derivados, mas já havia em mim uma consciência antiespecista. Comecei a buscar informações na internet e, em 2001, resolvi que não seria possível viver uma vida mais ética sem ser vegana.
Como foi a tua alimentação durante a gravidez? Que cuidados tiveste?
Sou uma mulher gorda e isso me causou uma certa apreensão durante a gravidez, apesar de ter uma ótima saúde. Fiz acompanhamento do pré-natal com um obstetra que foi extremamente cuidadoso. Continuei me alimentando com alimentação caseira, muitas variedades de vegetais e evitei açúcar ao máximo, pois tive um aumento de glicemia no início da gravidez e não queria ter um diagnóstico de diabetes gestacional. Suplementei ferro e ácido fólico, além de b12. Conversando com o médico, decidimos que não seria necessário tomar nenhum polivitamínico, pois minha alimentação estava bem diversificada e completa. Sentia muita vontade de comer — e comia muita — couve crua com limão. Acredito que nosso corpo se comunica connosco através dessas “vontades”.
O que dirias às mulheres grávidas e às mães que gostavam de ser vegetarianas mas que têm receios?
Existe muito senso comum sobre a saúde das pessoas veganas, muito terrorismo médico. Percebo que as mulheres preferem não correr o risco de terem uma gestação vegana por receio de que possam prejudicar o desenvolvimento de seus bebês. Mas não há nenhuma evidência científica que diga que não se pode ter uma gravidez saudável sem carne. Mesmo assim, profissionais da saúde desatualizados fazem questão de continuar interferindo nas escolhas das pessoas.
Por isso, a melhor coisa que se pode fazer é procurar uma rede de mães e famílias veganas e se tranquilizar sobre isso! Crianças veganas são perfeitamente saudáveis e se desenvolvem normalmente. Associar crianças deficientes com uma alimentação à base de plantas é capacitista.
Arte de Catie Atkinson
Tu e a Olga fizeram amamentação em livre demanda e também amamentação prolongada. Como foram ambas as experiências?
Eu não me preparei para a amamentação. A única coisa que antecipei foi pedir para uma amiga trazer dos EUA uma pomada vegana (que não tem no Brasil) para os mamilos não racharem, pois era a única coisa que eu tinha medo. Tinha certeza de que daria conta da amamentação, que era só oferecer o peito e tudo ocorreria conforme a natureza manda.
Tive algumas dificuldades no começo e recorri a grupos de mães veganas para entender o que estava acontecendo. E tudo deu certo pois tive acesso a muita informação correta, sorte e paciência! Hoje vejo que foi muita ingenuidade minha e que muitas angústias que tive poderiam ter sido amenizadas se eu tivesse estudado um pouco mais sobre o assunto antes do nascimento.
Olga nasceu de 38 semanas mas a avaliação da idade gestacional de recém-nascida (método capurro) acusou 35 semanas.
Na maternidade não foi oferecida fórmula para complementar a alimentação em nenhum momento e o pediatra foi bem categórico: livre demanda. Ela era muito pequena e magra, mas conseguiu engordar bem e cresceu 7cm no primeiro mês. Só mamando no peito, em livre demanda. Vi que não havia argumento para quem ousasse falar que meu leite vegano era fraco! Isso me fortaleceu e pudemos prolongar a amamentação até os 3 anos e 8 meses. Só paramos porque eu estava exausta. Conversamos bastante sobre o desmame e ela propôs fazer uma contagem regressiva de 10 dias para deixar de mamar. No dia zero ela fez um desenho e nunca mais pediu. Fiquei muito orgulhosa da sua segurança e convicção em encerrar esse ciclo. Algumas pessoas chamam de maturidade mas eu não concordo, porque dizer que uma criança pequena tem mais maturidade para certas coisas me diz que subestimamos a capacidade de entendimentos dos pequenos. Por isso, é essencial conversar e escutar as crianças. Consegui ver na prática o resultado dos benefícios que os especialistas tanto batem na tecla: os benefícios para a saúde física e emocional. Algumas coisas são difíceis para eu falar não sendo especialista da área da saúde, mas ouvir os profissionais que possuem uma abordagem voltada para o bem-estar global da criança é mais interessante do que aquele que te receita uma lista de medicamentos para cortar sintomas, por exemplo. E a amamentação tem um papel fundamental nisso.
Que conselhos queres dar às pré-mamãs e às mães que querem amamentar mas têm dúvidas, não se sentem seguras e/ou foram desencorajadas a fazê-lo?
Acho importante conhecermos nossa anatomia e como funciona nosso corpo, bem como o processo de produção do leite, hormônios, a pega, bico artificial e tudo o que for relativo à amamentação. Busque informação de fontes seguras, como profissionais da saúde e mulheres que militam pela amamentação. Fuja de profissionais patrocinados pela indústria farmacêutica e de alimentos ultraprocessados sempre que possível. Não crie expectativas porque o natural parece fácil mas não é: pode ficar dolorido no início, incomodar… e é normal! Amamentar é um momento íntimo entre duas pessoas e leva um tempo para ajustar essa intimidade. Mas se identificar algum problema procure um profissional que possa te ajudar. Para conseguir distinguir um problema de algum desconforto é importante estudar, ler, conhecer!
A cortina especista está estendida em todo o lado e cobre-nos constantemente: como podemos educar as crianças a respeitar os animais quando o padrão é precisamente o oposto?
Precisamos parar de subestimar o entendimento das crianças e de separar o que é assunto que diz respeitos aos adultos do que diz respeito aos pequenos. Acredito que é mais fácil educar uma criança que um adulto, mas as diversas militâncias nunca olham para as crianças. Então a gente tem que pensar em como incluir as crianças veganas dentro da militância. Um exemplo é a briga que as famílias veganas travam nas escolas públicas para que seus filhos tenham uma alimentação escolar adequada ao veganismo. Isso deveria ser pauta de militância, não uma batalha individual. Muitas crianças que nascem em famílias veganas não têm sua alimentação respeitadas e as famílias acabam cedendo para evitar atritos com familiares e escolas. Entendo isso como uma privação de direitos. Estamos privando as crianças de serem acolhidas como veganas, na esperança de que um dia elas cresçam e criem consciência sozinhas ao invés de cobrar o poder público.
Individualmente, as famílias têm diversas formas de educar uma criança vegana. Deve-se falar sobre compaixão e empatia com os animais desde o ventre. Isso pode ser feito com livros, filmes, conversas e exemplos. Claro que para cada idade temos que ter um tipo de abordagem e os devidos filtros. Conforme a criança vai crescendo, ela vai assimilando e fazendo as pontes entre o que ela escuta em casa e o que ela observa no mundo. Há momentos em que a criança não consegue discernir entre o que achamos correto ou não. Cabe aos responsáveis intervir e orientar com amor e paciência. Seja a respeito do veganismo, racismo, machismo… a forma de lidar é a mesma: paciência e diálogo.
Arte de Catie Atkinson
Dentro do feminismo e do veganismo as vozes das mães continuam a não ser escutadas. O que podemos fazer para acabar com essa invisibilização?
Acredito que uma das maiores conquistas do feminismo foi que hoje podemos questionar a maternidade compulsória e isso é maravilhoso. Nenhuma mulher deve ser obrigada a parir, cuidar e educar uma criança. Mas não podemos confundir isso com a omissão do senso de responsabilidade do coletivo, do senso de comunidade. Homens sempre excluíram as mulheres, principalmente as mães. O feminismo não tem sido generoso com as mães também. Então, precisamos pensar em como mães e crianças deixem de ser tratadas como subcategoria de gente. O veganismo político é uma luta antiespecista e tem a missão de eliminar essa subcategoria pelo seu comprometimento com as questões sociais.
Quando falo sobre isso, parece que basta tratar as crianças como alegorias. Mas é mais do que isso: precisamos lutar por políticas públicas que favoreçam que as famílias veganas criem seus filhos veganos; precisamos pensar em formas de nos responsabilizar coletivamente para incluir as mães; precisamos pensar na militância do veganismo através de uma perspectiva antipatriarcal. ■
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