A Marta é uma leitora do blogue que, com todo o carinho, aceitou participar nesta rubrica e, assim, contribuir para a desconstrução do pré-conceito socialmente estabelecido em relação ao veganismo na maternidade. Nesta entrevista, ela partilha connosco a sua experiência em amamentar prolongadamente e como é criar uma criança pequena num ambiente fortemente tauromáquico.
Fala um bocadinho de ti.
Sou de Lagos, onde vivi toda a minha infância e adolescência. Sempre me interessei por ciências
mas acabei por tirar um curso de artes na vertente de desenhos animados. E é nisso que
trabalho hoje em dia, como freelancer.
Também me interesso por questões da ecologia, da sustentabilidade, da natureza, da
agricultura, da permacultura, da biologia e também por nutrição (como qualquer vegan –
ahah!).
Idealizo poder viver de uma maneira que tenha o menor impacto negativo possível sobre a Terra
e sobre os outros de maneira geral, mas tenho muito que aprender e que errar.
Quando te tornaste vegana? Quais foram os motivos principais?
Tornei-me vegan em Setembro de 2014 depois de ver o Cowspiracy. Já era vegetariana há 7
anos, desde os 19, depois de ter visto os primeiros 7 minutos do Earthlings (se tivesse visto o
filme todo tinha percebido que ser só vegetariana não era lá grande ajuda para os animais, mas
como foi muito forte para mim parei o filme assumindo que tinha percebido a mensagem.)
Na realidade, sempre achei que não fazia sentido gostar de animais e matá-los para os comer (ou
para os vestir, ou usar, ou experimentar, etc.) mas aceitei a contradição. Por isso, assim que tive a confiança suficiente para alinhar os meus valores com as minha
acções, fi-lo. Sei, contudo, que essa confiança teve muito a ver com o facto de me sentir
acompanhada neste caminho, felizmente, pelo meu namorado, que viu comigo o filme e fez a
mesma escolha. Receio que, sem esse apoio e motivação, continuasse a viver em contradição
por não ter capacidade de enfrentar sozinha todas as dificuldades inerentes a ser-se vegan num
mundo não vegan.
Como foi a tua alimentação durante a gravidez?
Durante a gravidez tive muitas crises de dúvidas, de ansiedade, de stress, de pânico, enfim.
Muita gente, desde familiares a médicos, me contava tragédias que tinham acontecido a sabe-se
lá quem que era vegan e cujo filho nasceu doente ou deformado, etc. Tudo isso me fazia passar
horas na Internet a pesquisar o que devia comer ou o que devia ou não suplementar, e se era
seguro ou não para mim e para o bebé. Quase todos os dias me perguntava se estaria tudo a correr bem ou se estaria a condenar a
criança a algum trágico desfecho.
Respondendo à pergunta: A minha alimentação foi normal, vegan. Os suplementos que tomei
foram os mesmos que tomava antes da gravidez: B12 e vitamina D, e acrescentei ómegas 3 DHA
e EPA. Tive também o cuidado de comer frutas e vegetais com bastante ácido fólico.
Apesar dos benefícios comprovados, a amamentação prolongada é alvo constante de preconceito. Como está a ser a tua experiência em amamentar uma criança com mais de 2 anos? Que mensagem queres deixar às mães que são constantemente pressionadas a parar de amamentar?
A minha experiência está a ser muito boa. Desde que soube que ia ser mãe que queria muito ser
capaz de amamentar e o facto de ter conseguido e durante tanto tempo faz-me sentir bastante
realizada no que a isso diz respeito. Ajuda muito a tranquilizar a criança em momentos difíceis e ajuda a que adormeça mais calmamente: por isso é bastante útil, além até da nutrição e da
imunidade que em princípio o bebé receberá.
Mas claro que sempre que o meu filho mama em público alguém comenta. Tanto recebo
comentários de aprovação e incentivo como comentários num tom já diferente como “Ainda
mama??” ou “Isso já é só brincadeira, já não sai leite nenhum”. Até já recebi comentários destes
por parte de profissionais de saúde. Aliás, durante o parto disseram-me logo que não ia
conseguir amamentar por ter mamas muito pequenas. Enfim.
Mesmo na família há muitos comentários sempre que o meu filho mama. Mesmo que não sejam
comentários depreciativos, acabam por fazer com que o meu filho e eu sintamos que não é uma
coisa simplesmente natural por dar demasiado nas vistas.
O que eu tento pensar é que as pessoas fazem esses comentários porque tiveram experiências de
vida que as levaram a ter uma determinada maneira de ver a amamentação e que não é por
mal. Claro que isso não justifica que se digam certas coisas, especialmente ao meu filho, como “Já és tão grande e ainda mamas?”.
Eu vou amamentar enquanto eu e/ou o meu filho quisermos, e acho que é isso que importa. Se uma mulher quer amamentar, amamenta (se conseguir, claro, porque às vezes pode ser
difícil), se não quer, não amamente. Se a criança quiser mamar, mama, se não quiser mamar, não
mama. Ninguém mais tem nada a ver com essa relação e o que é certo é que mais cedo ou mais
tarde a criança vai deixar de mamar.
Arte de Catie Atkinson
Além do leite materno, quais são os alimentos que mais consideradas essenciais e dás ao teu filho? Quais são as comidas preferidas dele?
Como a maior parte das crianças não mama tanto as quantidades de comida recomendadas
como ideais não têm isso em conta, e durante muito tempo — quase 2 anos — o meu filho parecia
não comer nada. Nós ficávamos preocupadíssimos e o pressionávamos para comer, e claro que
ele odiava isso e nós também.
Depois começámos a ter mais calma porque metemos na cabeça que ele nunca esteve com
pouco peso nem com dificuldades em crescer e desenvolver-se, por isso de certeza que tudo
estava a ir bem. Falo disto, pois, pode acontecer com outras mães e pais. Eu via outras crianças a
comer muito mais e essa comparação assustava-me. Quando o meu filho tem fome ele pede
comida ou mama, quando não tem fome não pede, e está tudo bem com isso. Quero que ele
coma com gosto e apetite e tenha uma relação boa com a alimentação. Não quero que ele coma
porque tem de comer, ou porque precisa de X nutriente ou de X calorias.
O meu filho gosta sobretudo de fruta, sementes, nozes, amêndoas, cajus, azeitonas e pão com
manteiga de amendoim e banana. As comidas cozinhadas preferidas são papas de aveia, arroz,
massas, brócolos e batata-doce.
Ponho linhaça na papa de aveia e nas torradas porque me preocupo que ele coma ómega 3
suficiente. E tentamos que ele não coma alimentos com açúcar adicionado nem coisas fritas,
gordurosas ou muito salgadas.
Vives numa zona com tradições tauromáquicas e cinegéticas profundamente enraizadas. Achas que isso irá provocar algum impacto no modo como o teu filho olhará para as coisas quando começar a entendê-las? Num ambiente desse género, em que a exploração animal, além de normalizada, é glorificada, como podemos remar contra a maré e educar as crianças para que compreendam que essa exploração não é correcta?
Para dizer a verdade, não sei. Não sei como vai ser a atitude dele relativamente ao veganismo.
Espero que ele perceba que não queremos magoar os animais porque eles são como nós e
sofrem, e espero que isso então faça sentido para ele naturalmente. Tal como espero que ele
perceba que não devemos descriminar outras pessoas que sejam diferentes de nós, apesar de
também ainda haver algum racismo e sexismo nesta zona (e no nosso país, de forma geral).
As crianças tendem a aceitar genuinamente toda a gente, a gostar de todas as pessoas e dos
animais. Quero acreditar que é mais fácil uma criança não apreciar touradas, ou aceitar que não
fazemos mal aos animais e não os comemos, do que ensinar-lhe que podemos espetar coisas
nas costas de um animal, que isso é fixe, ou que os animais existem para os
dominarmos, explorarmos e matarmos.
Claro que deve ser difícil crescer com essa sensação de ser diferente do resto da família e dos
amigos. Eu não passei por isso, não sei como será. À medida que forem surgindo os desafios eu
vou procurando por outras pessoas que tenham passado pelo mesmo, para saber se têm algum
conselho, e vou tentar não ser ansiosa sobre isso, porque não quero passar essa sensação ao
meu filho. Quero que ele saiba que deve ser respeitado pela pessoa que é e que não tem de ir
contra a sua consciência para ser respeitado pelos outros.
Cada vez há mais pais a oferecer uma alimentação vegetal e saudável aos seus filhos, algo que não é aceite por muitos familiares e que, consequentemente, cria problemas e conflitos. Que conselhos dás aos pais que enfrentam esse tipo de situação?
Adorava saber também a resposta a esta pergunta... Infelizmente ainda não a descobri. Parece-me
que a melhor maneira é dar o exemplo em vez de falar para tentar convencer. Mas isto é
difícil... até porque nós vemos o mundo de uma maneira tão diferente que as outras pessoas
não conseguem conceber algumas coisas que para nós são óbvias. Para os nossos familiares,
qualquer produto de origem animal é bom e saudável. Se umas bolachinhas têm só um
bocadinho de leite de vaca não deve fazer mal, certo? Para nós faz muito mal, especialmente
para a vaca, e isso nós não conseguimos apagar das nossas cabeças. E para a criança é bom saber
que não há excepções, porque quando há excepções é muito fácil procurá-las sempre que há
dificuldades. E, como dificuldades há muitas, o caminho ia ser óbvio. Não há excepções. Se
alguma coisa não é vegan, nós não consumimos, não comemos, não vestimos, não calçamos,
não usamos, não participamos. Ponto final. ■
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