Tudo parece ser tão libertador no campo: o som do vento a dançar por entre as árvores; o balir das tímidas ovelhas; nenhum arranha-céus a esconder as nuvens esvoaçantes no manto celestial; poder ver perfeitamente as estrelas à janela; o cheiro da floresta; o cantar da cigarra; o toque das amoras selvagens colhidas à tardinha. É impossível existir algo de errado neste ambiente pacato e tão harmonizado com a vida.
A vida.
Os Casais da Bica, uma pequena aldeia que se perde por entre vários carreiros que já foram mais verdejantes, embalaram uma grande parte da minha infância quando eu passava as férias na casa da minha avó. O sol enxugava ternamente os lençóis estendidos no pequeno terraço que ficava debaixo das escadas que levavam ao sótão. O meu bisavô gostava de sentar-se lá, num banco improvisado com uma caixa de frutas, segurando no cajado e contemplando as linhas intermináveis de videiras que começavam, muito timidamente, a gerar pequeníssimas uvas. Eu brincava incansavelmente, correndo pelas vinhas, ao mesmo tempo que apanhava gafanhotos e sapos para vê-los melhor, para depois largá-los novamente. Uma vez por outra puxava a minha avó para passearmos juntas na mata: no Verão apanhávamos hipericão e no início de Outono fagulhas de pinheiro. Adorava sentir aqueles perfumes distintos, aqueles sinais subtis da mudança da estação. Adorava estar rodeada pela natureza e pelos animais e sentia-me completamente em casa. Na minha cabeça de criança, tudo o que se vivia na aldeia era perfeito.
Uma vizinha da minha avó tinha um aviário gigante e eu estava ansiosa para ver os animais, pelo que fui ter com ela. Na escola eu tinha aprendido que as galinhas correm soltas e felizes pelas quintas, debicando pedaços de erva e empoleirando-se nas costas das vacas e eu pensava que ia, finalmente, ver isso ao vivo e a cores.
Por fora, o aviário era puro cimento que tapava uniformemente os tijolos, rematado com uma porta que parecia ter sido colocada às pressas. Não se ouvia vivalma do interior, o que interpretei como bom sinal: os animais deviam estar confortáveis, serenos e satisfeitos, tamanho era o sossego.
A porta foi aberta. Fui automaticamente atacada por um cheiro forte e um barulho descomunal. Espreitei e vi centenas de frangos extremamente jovens aos gritos, completamente perdidos. No tecto, duas luzes fracas e artificiais iluminavam o espaço.
Fiquei perplexa. Como não conseguia ver o topo do telhado, pensei que tinha uma clarabóia que permitisse a passagem de luz natural e de ventilação. Permaneci imobilizada pelo choque, não desviando os olhos. As aves mal respiravam e não conseguiam se mover: estavam entaladas umas nas outras, queixosas e aflitas, piando desvairadamente. O calor era imensurável, tornando aquele espaço infinitamente pior do que uma estufa.
No centro havia dois dispositivos de plástico suspensos por uma corda: um deitava água e o outro alimento. Foi fácil perceber que muitos daqueles frangos não comiam nem bebiam durante dias a fio: se quisessem sobreviver, tinham de passar por cima dos seus companheiros e irmãos, o que levava a mais gritos e indignação. Isso magoava tanto uns como outros, algo bem denunciado por alguns bicos feridos e asas quebradas.
Enquanto o inferno estava mesmo ali ao lado, as pessoas elogiavam a senhora por esta manter os animais tão bem tratados e por lhes dar ração de alta qualidade. Essa ração de alta qualidade, como assim a chamavam, é semelhante à que as indústrias avícolas utilizam: é uma ração concentrada e modificada, com o propósito de levar os animais a crescer mais depressa do que o normal. O objectivo desse processo é também igual ao dessas indústrias: quanto mais depressa o animal crescer, mais depressa poderá ser morto — e assim minimizam-se os gastos provocados pelos cuidados básicos e liberta-se espaço para produzir mais animais.
Os aldeões continuavam a falar entre si, afirmando como gostam muito de animais, ao mesmo tempo que negociavam com a vizinha para que esta lhes vendesse alguns frangos assim que estivessem "bons para ir p'ró tacho". Os preços foram simpaticamente estabelecidos e a porta do aviário fechada. O barulho desapareceu repentinamente e o que se passava lá dentro, automaticamente, deixou de existir.
Pensar que aquelas aves estavam no escuro, atordoadas pela fome, sede, calor e cansaço, cortou-me completamente a alma. Deviam ter umas meras semanas de idade, pelo que eram basicamente bebés e crianças.
Em todo o mundo, exploramos, torturamos e matamos milhões de indivíduos sencientes em plena idade infantil. Isso não nos impede de continuar a comprá-los e a comê-los, o que demonstra o quanto os desconsideramos só por estes serem de espécies diferentes. É como se o facto de serem animais não-humanos fosse o suficiente para fazer o que fazemos com eles.
Passou algum tempo desde o triste episódio do aviário. Numa manhã, cuja memória apagou o resto do dia e só registou essa manhã, decidi brincar e pus-me a correr de um lado para outro. Naquela época as pessoas deixavam a portas das suas casas sempre abertas, recebendo alegremente e sem questionamentos quem passasse por lá. Entrei na adega da vizinha que habitava ao lado da minha avó e alcancei a entrada do seu lar. Era uma velhinha de costas encurvadas, muito doce, caridosa e com um aspecto frágil: eu gostava mesmo muito dela. Vi-a e disse-lhe bom-dia, com um sorriso todo infantil e arreganhado. Ela retribuiu e disse-me, amorosamente, para eu voltar daqui a um bocado porque naquele momento estava ocupada.
— Vem depois do almoço para te dar uns biscoitos, está bem minha querida? — E virou costas, dirigindo-se para o quintal.
A curiosidade levou-me a desobedecer.
Segui-a. Vi-a a entrar para o local onde guardava as galinhas. Inicialmente pensei que fosse alimentá-las mas, de repente, ouvi asas a bater freneticamente enquanto as aves berravam, afligidas. Fiquei um bocado a estranhar mas não me questionei. Passado um minuto surgiu com uma galinha na mão, presa pelas asas. O animal ofegava, latejante, e notava-se perfeitamente que estava aterrorizado. As plumas encontravam-se eriçadas, a crista totalmente erecta e todo o corpo tremia loucamente.
Estava prestes a ir ter com a velhinha para perguntar-lhe o que estava a fazer quando, do nada, puxou de um facão e começou a degolar a galinha.
A ave gritou. Num esforço hercúleo tentava debater-se das mãos que a assassinavam. Todo o corpo balançava numa epilepsia tortuosa; era impossível não compreender que o animal estava a tentar sair do abraço vituperante da morte.
Empalideci. A galinha voltou a gritar, ainda com mais força, e fiquei tão horrorizada que gritei também. A velhinha ouviu-me e assustou-se: a galinha aproveitou o momento e soltou-se daquele aperto, tentando correr para a esperança que já tinha morrido. Com metade do pescoço cortado já não conseguia gritar, mas o pânico desmesurado espirrava pelo seu corpo numa maré vermelha hedionda. A ave continuava a debater-se, abrindo e batendo violentamente as asas, enquanto o sangue continuava a pintar o seu sepulcro. Continuou assim até toda a sua vida ter sido espremida do seu pequeno corpo, que tombou levemente no chão de pedra.
Olhei em volta, com o coração rouco de tanta gritaria: o átrio do pequeno quintal transformara-se num autêntico matadouro. A parede estava salpicada de sangue; mirei sub-repticiamente a minha camisa e estava vermelha, com o cheiro penetrante e pestilento da morte.
A velhinha nada falou: fitou-me, séria e preocupada, enquanto os seus contornos faciais demarcavam as suas rugas. Também olhei para ela e retirei-me daquele horror sufocante sem dizer uma palavra. Somente o silêncio ficou. O silêncio que impomos, todos os dias, aos animais que gritam e tentam fugir desse destino maldito.
Um frango do campo acaba por ter o mesmo fado que um frango industrializado: é morto para satisfazer o paladar de alguém. Não importa se é mais livre, se tem mais espaço e se tem melhores condições de bem-estar: tudo isso é deitado abaixo quando a sua vida é-lhe tirada.
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