No final de Junho deste ano, um grupo de pessoas feriu gravemente uma tartaruga para tirar fotografias. Após subirem para cima do animal, espicaçá-lo com paus e arrastarem-no pela areia, acabaram por partir-lhe a cabeça. A tartaruga, de uma espécie em vias de extinção, foi resgatada por uma associação de defesa dos animais do Líbano, que imediatamente pôs mãos à obra para salvar-lhe a vida.
Este é um dos inúmeros casos, diários, onde os animais são maltratados, humilhados e reduzidos para as pessoas dedicarem-se à nova pandemia deste estranho século: as selfies. O termo, que significa nada mais do que “auto-retrato” num neologismo estrangeirado, acarreta consigo acções impensáveis e consequências dramáticas.
Veja-se, por exemplo, o que se passou no ano passado, também com tartarugas, na Costa Rica: os turistas ficaram tão ansiosos com a nidificação destes animais que acabaram por interrompê-los. O ciclo natural das tartarugas foi severamente atrapalhado, já que os turistas teimaram em fotografá-las, assustando-as com os flashes, bem como quiseram subir para cima delas – sempre com o intuito de conseguir a selfie perfeita.
Algumas situações como estas resultam na morte do animal, como o tubarão na República Dominicana e o cisne que acabou por não resistir na Macedónia – tudo a troco de fotografias. De acordo com o Take Part, esta tendência deve ser encarada como preocupante, contrariamente ao que tem sido feito.
As pessoas, cada vez mais, interferem na vida dos animais com o objectivo de registar o momento numa imagem. Essa ânsia de tirar uma fotografia com um animal, preferencialmente selvagem, é reveladora da admiração que o ser humano tem perante o supracitado – mas também é reveladora da nossa visão antropocêntrica e de dominância sobre eles. Só mesmo nós conseguimos transformar algo tão inofensivo, como tirar uma fotografia, num potencial féretro – porque estamos seguros da nossa auto-proclamada superioridade e como as nossas vontades mais supérfluas possuem muito mais valor do que uma vida senciente. Afinal, tratam-se de animais irracionais, pertencentes a espécies que não a humana e, portanto, diferentes. E é com essa diferença que insistimos na apatia total, ao mesmo tempo que desejamos fervorosamente vê-los, tocá-los e compactá-los na lente fotográfica e na gaveta das nossas memórias. Tornamos essa incompatibilidade perfeitamente plausível e continuamos a alimentá-la – mesmo que, para isso, a vida dos animais tenha de ser perturbada ou, até mesmo, interrompida.
Nem vale a pena descrever as sevícias, tanto físicas como psicológicas, que os animais passam para que esta fútil ambição humana prevaleça. Se, para alguns, tais sevícias são fruto de uma ingenuidade boçal, para outros é sinónimo de lucro: nos circos, os dentes dos grandes felinos e dos símios são arrancados para que as pessoas possam tirar uma fotografia com eles. O turismo também é outro círculo vicioso de exploração, principalmente nos países que aproveitam-se de animais selvagens e exóticos. As pessoas, hipnotizadas, pagam para andar de elefante, pagam para tirar fotografias com o macaquinho vestido de Abu, pagam para tocar na serpente – e o pior de tudo, aparentam não compreender o que se passa. Aparentam não compreender que, para conseguirem andar no elefante, tirar fotografias com o macaquinho e tocar na temida serpente, todos esses animais tiveram de aguentar injúrias inimagináveis. Espancados, admoestados, drogados: é este o real preço de uns minutos de diversão, posteriormente recordados em registo fotográfico. E, actualmente, em vez de aperceber-nos disso, arrastamos essa situação para o próprio habitat natural dos animais: fazemos isso com eles, por livre e espontânea vontade, e continuamos a não perceber os maus-tratos que acabamos por infligir. Como é possível esta admiração, tão grande, tornar-se mortífera? Como é que somos capazes de transformar um sentimento, que devia incluir o respeito, num verdadeiro atentado contra a integridade de seres sencientes?
Dizemos que gostamos de animais e que, por isso, desejamos interagir com eles e registar os momentos que conseguimos ter com eles. Por isso é que tiramos animais marinhos da água, mesmo que isso os deixe angustiados ou que os mate. Queremos estar próximos deles, apreciá-los como se fossem nossos. Queremos mostrar aos outros, nas redes sociais, o quanto adoramos a natureza e os outros seres que nela habitam. Porque, acima de tudo, gostamos de animais.
E, ao longo do tempo, temos demonstrado cada vez mais essa admiração que temos por eles. Depois do filme À Procura de Nemo, a demanda pelos sublimes peixes-palhaço disparou 40%. De acordo com a Saving Nemo, mais de um milhão de peixes foram capturados, bem como a National Geographic alertou para a apanha insustentável destes animais, principalmente nas Filipinas e na Indonésia, e como isso afecta a população dos mesmos. O filme mostra como os animais odeiam estar presos no aquário e como preferem descer pela sanita se isso lhes devolver a liberdade – mas preferimos adquiri-los, nem que para isso eles sejam retirados do seu habitat.
Colocamos aves em gaiolas, domesticamos animais exóticos, caçamos e empalhamos as cabeças dessas criaturas que inspiraram os mitos mais famosos da Humanidade, utilizamos as peles daquele jaguar ou daquele crocodilo, precisamente, por nos suscitar fascínio e respeito... em suma, fazemos o que fazemos com os animais porque gostamos deles.
Mas não sentimos empatia por eles.
Colocamos o nosso conceito de gostar, totalmente subjectivo e deformado, acima dos animais em si – porque somos incapazes de nos colocar no lugar deles, porque fazê-lo é sinónimo de inferiorização voluntária, porque isso já é demais e só os maluquinhos é que fazem, porque as diferenças entre humano e animal são hegemónicas e bem mais substanciais do que essa “compaixão vazia de razão”(1). E é isso que perpetua, e continuará a perpetuar, o fosso escabroso que distorce e divide a nossa relação com eles.
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