19/11/2015

O desafio do veganismo: Costumes especistas e manipulação publicitária


Se houve algo que aprendi quando tornei-me vegetariana (e, posteriormente, vegana), foi que a única coisa difícil de suportar quando se dá um passo para esta dimensão é a desinformação, a indiferença e a insensibilidade. A família, os amigos, os colegas de escola/faculdade/trabalho e o vizinho do lado conseguem criar uma bolha que está sempre pronta para estoirar e iniciar uma guerra argumentativa.
Os ingredientes que formam essa bolha, que é aplicada como arma de arremesso contra a decisão de não financiar a morte e o sofrimento, nada mais são do que fruto de costumes bastante enraizados e fortificados pelas tradições sociais, que passam também pela persuasão publicitária que camufla muito bem a exploração dos animais com cenários irradiantes de perfeição e de harmonia:

Seja com a exibição de um prado que estende-se até ao infinito, com vacas a ruminar a erva com bonomia (o que incentiva ao bem-estarismo, levando à conclusão de que os animais podem ser aproveitados para os nossos interesses caso forem bem tratados


Com um quadro familiar alegre que une pais, filhos e avós à mesa;


Com anúncios que ligam o consumo de produtos de origem animal à saúde das crianças;


Com as propriedades singulares e espectaculares de um determinado produto testado em animais (geralmente fortificado com a imagem de uma celebridade);


Com a antropomorfização de animais, o que oferece a ideia de que eles próprios concordam com o consumo de produtos derivados deles,

a manipulação está presente e conseguiu estipular uma lista de normas que tornaram-se leis para a maioria. A semente foi plantada acerrimamente no subconsciente da sociedade e afirmar-nos contra o que foi plantado é inevitavelmente visto como uma rebeldia, uma loucura, uma alienação ou até mesmo uma violência: as reacções negativas não se fazem esperar e conseguem, inicialmente, levar-nos a pensar que estamos sozinhos numa imensidão de contestação. Afinal, aparenta que estamos a distanciar-nos das ligações familiares e das amizades e que desejamos isolar-nos do nosso compromisso como seres sociais e tudo isto porque os hábitos que unem as pessoas umas às outras também giram bastante à volta da comida.

A verdade, todavia, é que esta decisão ética não catapulta ninguém para a solidão: só na Alemanha, por exemplo, o veganismo cresceu cerca de 800% num curto espaço de três anos. As mentalidades individuais estão a desapegar-se da tradição e do que é visto como convencional e, presentemente, estão a unir-se numa única esfera que grita esta nova ideologia que afirma os direitos de todos os animais. O veganismo, de facto, tem brotado cada vez mais e tem ficado mais sólido. As indústrias que utilizam animais para lucrar têm conhecimento disso e bifurcam-se em duas vias opostas:
ou deixam de remar contra a maré, abandonando parcialmente ou totalmente a exploração realizada em animais,
ou procuram combater esta revolução ética, patrocinando e incentivando artigos que debitam mil e um malefícios de uma alimentação exclusivamente vegetal, que os testes em animais são essenciais para a segurança humana, que existem ingredientes de origem animal insubstituíveis em cosméticos, ou que primam pelo bem-estar nas fazendas de peles, nos circos e noutros entretenimentos quaisquer.

Como se não bastasse travar essa batalha, o veganismo ainda tem de aguentar o rodopio de intransigência e cepticismo que coabita no círculo que compõe o seio social de cada um: de repente, o primo do sobrinho da filha do tio da nossa avó é automaticamente doutorado sobre o assunto e, após largos anos sem dirigir-nos a palavra, decide instalar um púlpito invisível para começar o seu longo sermão falacioso:
• Comer carne é normal e imprescindível,
• Os animais podem ser usados e explorados para os nossos interesses pessoais porque não são a mesma coisa que os seres humanos,
• Não vale a pena boicotar produtos testados porque não deixarão de existir,
• Utilizar as peles dos animais é um aproveitamento sustentável, visto que morrerão de qualquer das formas,
• Leite é essencial para evitar a osteoporose,
entre outros.

Em suma, é difícil aceitar que se deixe de financiar a objectificação clara e distinta de um animal porque, para além do que já foi referido, há perfeitamente a noção disso – de que se trata de um ser vivo capaz de experimentar a dor, e que vai ser assassinado porque há quem ainda pense que não conseguirá viver sem aquele bife, aquele queijo, aquele ovo, aquele creme hidratante, aquele condicionador e aquele casaco. O sentimento de ofensa surge, pura e simplesmente, porque o veganismo implica um despertar da consciência que muitos não querem ter: é preferível jogar à defesa, refutar a senciência dos animais que são explorados e insistir que temos direitos e privilégios que os animais não têm, o que valida que permaneçam encurralados num matadouro, numa arena, numa jaula ou num laboratório. Afinal, como seres racionais que somos, automaticamente somos superiores às restantes formas de vida; se estas também partilham experiências similares às nossas, tal é irrelevante. Não são intelectualmente evoluídas como nós, pelo que não merecem ter um estatuto que proteja-as devidamente. É assim que a corrente social ainda pensa.

É um tanto contraditório clamar pela racionalidade humana quando muitos animais não-humanos já comprovaram ser dotados de alguma racionalidade, como acontece no caso dos símios e dos golfinhos. Também é contraditório que essa racionalidade, que tanto pregamos para segregar-nos dos restantes animais, sirva para alimentar a discriminação com base na espécie mas não para concluir que somos detentores de uma capacidade de escolha na tomada das nossas decisões: afinal, é a razão que separa um indivíduo do seu instinto e se somos tão racionais assim, podíamos aproveitar mais as nossas faculdades e estabelecer um laço ético e moral com as escolhas que fazemos.
E, por último, a lógica ilógica da diferença não acarreta consigo um princípio de igualdade moral sólido visto que, se a atribuição de direitos fosse feita a partir da inteligência de cada um, os bebés, as crianças pequenas e indivíduos jovens ou adultos com capacidades intelectuais reduzidas seriam destituídos desse princípio. Não são, de modo algum, as faculdades mentais e intelectuais que compõem o direito íntegro do indivíduo: é, sim, a sua capacidade de sentir e todos os animais não-humanos sentem dor, nem que seja na sua forma mais mínima.

Outra razão que leva as pessoas a uma pulsão incompreensiva, que resulta numa visão anárquica e utópica do veganismo, é a desconsideração da eficácia do mesmo: do que serve uma pessoa ser vegana se os animais vão continuar a ser explorados e mortos para determinados fins?
Individualmente e é fulcral compreender pelo menos isso o veganismo é um princípio de justiça que procura, através dos hábitos quotidianos, anular maximamente a exploração dos animais. Um indivíduo que corta da sua alimentação todo e qualquer ingrediente de origem animal salva, anualmente, 100 vidas. Um indivíduo que não compra produtos testados em animais, que não compra vestuário com material proveniente de um animal (pêlo, cabedal, camurça, seda, lã, entre outros) e que não assiste a eventos que utilizam animais, acaba por não financiar empresas e marcas que exploram. E é precisamente nesse ponto que pretendo chegar: pode parecer que, individualmente, a eficácia é inexistente; afinal, essas empresas não vão aperceber-se que alguém não compra produtos das marcas que comporta por estes terem implicado exploração de seres sencientes. No entanto, se na esfera pessoal este gesto demonstra uma não-aceitação de utilizar produtos que feriram a integridade de um ser vivo que sente dor, o que revela a consciência ética da pessoa que o pratica, colectivamente este boicote já levou a várias derrocadas que culminaram no fim dos testes em animais em determinadas marcas, na abolição de espectáculos com animais em vários locais e na proliferação da alimentação vegetal em bastantes cidades e países. O que desejo mostrar com estes exemplos é que o veganismo, do ponto de vista pessoal, é um princípio ético que preocupa-se com os direitos dos animais; do ponto de vista colectivo transforma-se num movimento que sensibiliza para o desmantelamento do especismo. Em circunstância alguma é inútil: trata-se simplesmente de um patamar de consciência moral que abraça todas as formas de vida sencientes – cujo abraço é posto em prática com a inaceitação de tudo o que tenha implicado sofrimento e morte.

Para quem estiver a pesquisar sobre o veganismo deixo estas ligações que poderão ser úteis:

Despertar da Ataraxia
Cálculo da Morte: quantos animais já morreram por causa da nossa alimentação?
• Ideias para uma alimentação saudável e sem crueldade: Cozinha Vegetal, Compassionate Cuisine, Universo dos Alimentos, The Love Food, Presunto Vegetariano, Garden of Vegan
Aditivos de origem animal
A pecuária no geral
A indústria do leite
A indústria dos ovos e o debeaking
A senciência animal
O sofrimento dos peixes
Testes em animais
Vestuário ético
A produção de peles (com vídeo gráfico)
Foie gras: uma iguaria envenenada
Why We Love Dogs, Eat Pigs, and Wear Cows de Melanie Joy: leiam uma pequena passagem aqui e encomendem aqui (para Portugal) ou aqui (global)
Nos bastidores da violência tauromáquica: o desmame, a ferra, a tenta, a embolação, a pega ([x] [x]) e outras sevícias
Os circos: eternamente condenados ([x] [x] [x] [x])
A maré vermelha que os zoos marinhos não mostram
• Os animais não são coisas: o que financiamos quando decidimos comprar em vez de adoptar
Lutas de cães e lutas de galos
A crueldade escondida nas corridas de cavalos

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