01/08/2015

A dor do silêncio


Há algum tempo, a Acção Directa realizou uma campanha que espalhou-se gradualmente nas redes sociais: a dita consiste numa fotografia de um caracol com as frases Gostava de ser cozido vivo? Ele também não!.

A campanha tornou-se viral e bastante polémica, sendo actualmente alvo de piadas sarcásticas que espelham a indiferença e a insensibilidade que residem no coração humano, colidindo num imenso vazio que gera o insulto gratuito. Estas reacções adversas ao que a campanha transmite revela a enorme desconsideração que muitas pessoas têm pelas criaturas mais pequenas: arrisco-me a afirmar que, dentro do próprio especismo, são precisamente elas as mais prejudicadas e as que menos recebem direitos. Algo tão simples como respeitar a mais pequena vida senciente é sinónimo, para a maioria, de um extremismo tresloucado que não merece atenção. Tal deve-se por nós, como seres antropocêntricos e desligados das restantes vidas não-humanas, acharmos antecipadamente que mais nenhum ser vivo possui quaisquer direitos, à excepção da nossa espécie.

Com o passar do tempo afastámo-nos bastante dos animais não-humanos e passamos a classificá-los como meros organismos instrumentais, cuja existência é para servir os nossos interesses pessoais e esta avaliação é virada para animais maiores e mais complexos, como as vacas, os porcos, os ratos, entre outros. Por aí pode-se concluir que, se com os mamíferos é assim, com animais mais pequenos e menos complexos a situação tende a piorar. A inexistência de uma ligação que revele visivelmente que o animal está a sentir dor, como sucede com o caracol, catapulta-o para um olhar ainda mais frio e totalmente ataráxico em relação à sua existência enquanto ser vivo senciente. É avaliado como uma praga ou como algo inútil, sendo aproveitado no ciclo de exploração animal de acordo com uma determinada cultura civilizacional. Em Portugal os caracóis são vistos precisamente desse modo: como algo para ser pisado se estiver no passeio ou como um petisco. São colocados vivos em água a ferver e ninguém questiona-se sobre a dor que estes podem estar a sentir.

Porque eles não gritam.
Porque eles não fazem caretas.
Porque eles não se mexem.
Porque são somente caracóis.

E como não gritam, não fazem caretas, não se mexem e tiveram o azar de pertencer a uma classe altamente desprezada pelo ser humano, automaticamente conclui-se que não estão a sentir rigorosamente nada. O assunto fica arrumado, o que leva à incompreensão relativamente a uma campanha que defende o direito que esses moluscos têm à vida. Afinal não são como cães, ou gatos, ou até mesmo como outros animais assassinados para o mesmo fim: que estupidez vem a ser essa de andar por aí a espalhar uma mensagem implícita de que os caracóis não querem ser cozidos vivos? Eles não querem nada, até porque não têm desejos ou vontades: não são tão desenvolvidos como outros animais, pelo que é irrelevante matá-los para comer.

Desconstruindo esse pensamento:

Durante algum tempo considerou-se que as reacções dos invertebrados fossem simples reflexos e que não sentiam propriamente dor. No entanto, outros estudos científicos posteriores referem que os caracóis, assim como lesmas, baratas, caranguejos e lagostas, sentem dor. Só por não conseguirmos discernir à superfície que o animal está a sofrer, isso não indica que ele não é senciente: os invertebrados apresentam respostas nociceptivas semelhantes às apresentadas pelos vertebrados, podendo detectar e responder a estímulos nocivos, incluindo os caracóis. Tal deve-se porque os devidos possuem um gânglio cerebral: essa concentração de corpos celulares nervosos separados actua como um centro de influência nervoso.


Aplysia (uma lesma do mar) e Helix (caracóis de jardim) têm nociceptores e são capazes de condicionamento operante; portanto, a dor não está fora de questão para esses dois grupos de gastrópodes.(1)

Apesar de não ter as mesmas faculdades de um cérebro mais complexo, o glânglio cerebral é suficiente para reagir a estímulos exteriores e para produzir uma sensação de dor. Somando essa proposição biológica com a proposição ética de que todos os animais merecem viver, independentemente da capacidade que estes têm de sentir dor, é evidente que os caracóis estão enquadrados nesse plano moral que oferece-lhes direitos. Quando se trata de uma vida senciente não importa se esta sofre mais ou sofre menos em relação a outra: o que importa é que esta é capaz de sentir dor.

Ponham a mão no coração da consciência
porque todas as vidas importam,
até mesmo as que não têm voz.
A dor não é um grito, não é um olhar trucidado, não é uma convulsão. A dor é o que atinge um ser vivo por dentro, mesmo que não seja vista por fora.


Artigo revisto por Sandra Esteves, licenciada em Biologia pela Universidade de Aveiro.

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Recursos utilizados:
(1)The Naked Scientists
UTCUMQUE {matéria e imagem da anatomia do caracol}
Biorede 
ILAR Journal


Imagem | Google