Há proposições que, francamente, não sei como se formam na cabeça de algumas pessoas: é que são tão, mas tão incongruentes, e simultaneamente tão apoiadas e aplaudidas, que fico demasiado perplexa para conseguir pensar se hei-de pensar.
Imagem 1 | Dana Ellyn
A minha confusão deveu-se com uma notícia que relatava o apelo da modelo Sara Sampaio para que o hediondo festival Yulin, na China, findasse. O evento referido passa-se anualmente e sacrifica, de forma indescritivelmente brutal, mais de dez mil cães. Obviamente que apoio abertamente a interrupção definitiva desta barbaridade tamanha, pelo que peço que se assine esta petição (e esta também); todavia, ocorreu uma troca acesa nos comentários dessa notícia que deixou-me um tanto quanto desorientada: a conversa entre os internautas aqueceu e, de repente, uma discussão sobre a diferença entre um cão e uma vaca, de que o primeiro não é para comer e a segunda é, que matar o cão não é o mesmo que matar a vaca, entre outros argumentos que reflectem bem a compaixão selectiva que ainda mina a mentalidade da maioria da população, estendeu-se compulsivamente.
Pensei bastante antes de escrever este texto, porque várias pessoas que lêem o meu blogue ainda comem animais e também devem pensar deste modo; mas como criei precisamente este espaço para desmantelar tais considerações que são, irrefutavelmente, especistas, decidi fazê-lo. Quero deixar, de forma clara e distinta, que a minha pretensão é esclarecer e colocar as pessoas a reflectir e nunca, mas mesmo nunca, ofender. Para mim todos os animais merecem uma voz activa e é isso que vou concretizar sob a forma escrita.
Um cão e uma vaca são diferentes.
De facto são, em termos de classificação científica: o primeiro é um canídeo e a segunda faz parte da família dos bovídeos. No entanto, o que os une, bem como os restantes seres vivos que constituem o reino Animalia, é a capacidade de experimentar a dor. Todos os animais, desde cães, vacas, os restantes mamíferos, cetáceos, peixes, entre outros mais, são sencientes e susceptíveis ao sofrimento. Tanto o cão como a vaca são aptos a sentir algo e a demonstrar as suas emoções em relação a alguma coisa - e o mesmo estende-se para os restantes animais condenados à morte para a alimentação – desde a alegria e o medo. Nos matadouros, as vacas (e os outros animais, como os porcos e as galinhas) apercebem-se quando estão a ser encaminhadas para o corredor da morte e entram num pânico colossal. Na indústria dos lacticínios, quando os bezerros são separados das vacas para que não bebam o leite, tanto mãe como filho choram durante dias, chamando um pelo outro em vão.
A vaca, bem como outros animais, foram concebidos para a nossa alimentação.
Admito que esta afirmação deixou-me bastante confusa: o que é, neste caso, conceber? Quando alguém refere isto, o que entenderá por um animal que foi concebido para ser usado como alimento? Quem é que decidiu isto, para além do ser humano e da sua sobreposição em relação à vida dos animais e em virtude dos seus interesses pessoais?
Se, ocidentalmente, muitos de nós continuamos a ver as vacas, os porcos, as galinhas, entre outros tantos como comida, orientalmente os cães são vistos da mesma maneira. Infelizmente, na visão dessas civilizações, também foram concebidos assim – e, por muito que isto pareça frio e despojado de sentimento, se nós pensamos ter o direito de conceber determinados animais como comida, também eles têm essa mesma concepção mas com animais diferentes. Assim como não desenvolvemos laços de amor, de compaixão e de respeito para com a vaca, também eles não o fizeram com o cão. Já na Índia, por exemplo, em que a vaca é um animal sagrado e protegido, muitos de nós estranhamos esse relacionamento: o mesmo sucede-se na China em relação ao relacionamento que temos com os cães.
Posto isto, só quero referir que nenhum ser vivo foi criado para ser usado como uma finalidade; nós, numa espiral antropocêntrica, é que estipulamos assim. Se inicialmente foi pela sobrevivência (e, dito isto, é importante frisar que estou a referir-me ao Paleolítico, que sucedeu-se há milhares de anos, em que práticas como o canibalismo também eram viáveis para a continuação da sobrevivência), actualmente chega a ser uma mera questão de conformismo continuar a matar animais para comer quando já evoluímos racionalmente, moralmente, eticamente, tecnologicamente e cientificamente o suficiente, bem como já sabemos que existem milhares de alimentos de origem vegetal pelo mundo inteiro. Se não é aceitável matar um cão, seja para que razão for, também não é aceitável matar uma vaca. Ambos são seres vivos e ambos sentem o que acontece com eles, e isto é um facto.
O modo como os cães são mortos nesse festival nada tem a ver com o que se passa nos matadouros.
É desta forma que a indústria pecuária revela a sua obscura magia: o que se passa entre quatro paredes, cujos consumidores não vêem, é rapidamente abafado e não é sequer questionado. Existe um afastamento físico que tece uma barreira mental, tendo em conta que o indivíduo não presencia a vida miserável dos animais que são mortos para serem posteriormente consumidos. Já nesse festival chinês, em que os cães são selvaticamente torturados a céu aberto, vulgo, à vista de todos, obviamente o choque é enorme e as reacções antagónicas a tal sadismo não se fazem esperar para se ouvir. No entanto, quem protesta contra esse evento (e tem toda a razão em fazê-lo), potencialmente desconhece que aquilo que se passa com os animais retalhados que compra e que come não se distancia muito daquilo que o/a leva a indignar-se perante o festival Yulin. Se até nas indústrias pecuárias legais o horror é assombroso, nas ilegais é totalmente insano pensar sequer no que lá se passa. O que posso dizer, com toda a segurança, é que o que ocorre na maior parte dos matadouros consegue ser um espelho do que se passa nesse festival que admoesta selvaticamente os cães – a diferença é que os matadouros envergam uma muralha que esconde tudo o que neles acontece. Se alguém tem a capacidade de compreender que os acontecimentos festivos de Yulin são condenáveis, também tem a capacidade de compreender o mesmo em relação aos animais confinados e torturados na indústria pecuária.
Imagem 1 | Dana Ellyn
Imagem 2 | Vegan Sidekick
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