Que nojo.
Que nojo.
Sinto essas palavras a ecoarem no meu coração, rufante como um tambor, numa viagem memorial às lições de vida que foram-me arrancando a inocência impiedosamente. Eu era demasiado miúda, demasiado ingénua e demasiado despreocupada para aperceber-me do tabu que era o assunto, mas talvez tenha sido isso que levou-me a despertar mais depressa e a tomar consciência aos poucos. Passaram uns 12 anos e mesmo assim as vozes perseguem-me, sorrindo maldosamente, despoletando a humilhação que ainda hoje sinto na pele.
Se estava chuva ou sol, a caixa das minhas recordações considerou esse dado irrelevante. Lembro-me somente de estar feliz e com um véu cor-de-rosa a tapar-me os olhos, enquanto cruzava-me com pessoas que pareciam-me aquilo que deixaram de me parecer com o descortinar do tempo. Boas, genuínas e altruístas. Um optimismo irracional pelo meu semelhante, fruto da minha pouca experiência que ainda não me oferecera a descobrir a realidade.
Até que o vi. Deitado, esquecido, ferido e esgotado. Os cortes na orelha, no corpo e nas patas pareciam ter-lhe sido propositadamente infligidos. A minha incredulidade levou-me a parar. O véu cor-de-rosa rasgou-se quando olhei-o nos olhos. Retribuiu-me o olhar e não se mexeu. Olhei à volta e notei que as pessoas que passavam seguiam em frente sem sequer olharem para o cão moribundo que ululava por ajuda com os seus olhos tristes. Ninguém reparava nos seus estigmas ou no pêlo sujo, suportando as costelas desnutridas. Aproximei-me e dei-lhe a mão, que lambeu com uma alegria triste e um sofrimento gritante. Peguei com delicadeza na sua pata dianteira esquerda repleta de cortes abertos, cujo sangue empolava-se num casulo de pus branco. Estaquei, sem saber o que fazer. Fiquei mergulhada num manto de melancolia até o cérebro exigir que eu corresse em busca de ajuda. Os meus passos batiam violentamente nas pedras da calçada, desorientados e perdidos num mar de indiferença: as pessoas continuavam a passar por mim, ignorando-me completamente. O bater do relógio indicava-lhes que as tarefas que tinham para realizar eram mais essenciais do que socorrer um cão vadio. Ir às compras, ao cabeleireiro ou ao café é mais importante do que esse obstáculo cheio de saliva e pêlo. Ele não era de ninguém, pelo que a responsabilidade não era também de ninguém; portanto, para quê preocuparem-se?
Por fim, uma senhora respondeu ao meu apelo para ajudar aquele animal rasgado e torturado. Só uma. No meio de tanta gente, somente uma pessoa dignou-se em não virar as costas ao sofrimento imensurável daquele cão. Uma mistura de gratidão e de desilusão percorreram cada centímetro da minha pele, enquanto o cão saciava a sua fome e eu lhe enrolava os ferimentos com ligaduras desajeitadas. Os minutos voavam a uma velocidade alucinante e eu já estava atrasada para a aula. Contrafeita, tive de deixá-lo, deixando-o nas mãos da bondade da senhora. Iria com ele ao veterinário, o que deixou-me mais descansada.
Corri desalmadamente, esperando obter compreensão pela parte da professora. Bati à porta muito timidamente, entrando ruborizada pela correria desenfreada. A professora perguntou-me o porquê de ter eu chegado atrasada. Respondi-lhe a verdade. Nada mais do que a verdade.
Por momentos ela ficou a olhar, especada. Só depois é que reparei que toda a sala estava mergulhada no mais profundo dos silêncios. Os olhos postos em mim aparentavam cepticismo e perplexidade. O silêncio, o estrondoso silêncio, somente cortado pela barulheira da rua que as janelas separavam da sala. E, por fim, a voz revoltada da minha docente:
— Que estupidez. É só um bicho! Ele podia ter-te mordido e depois como era? Devia marcar-te falta por tamanha idiotice.
As minhas faces vermelhas devem ter ficado pálidas naquele momento. É só um bicho. A sério que ela disse aquilo? A minha cabeça não queria acreditar. Permaneci de pé, imóvel e calada, tentando agrupar as palavras que ainda nadavam na atmosfera. Os primeiros sorrisos de troça começaram a desabrochar, esfaqueando-me as costas, a cara, tudo, instantaneamente.
— Lavaste as mãos e desinfectaste-as com álcool?
— Não...
— Que nojo, rapariga. Mexeste num cão que anda por aí nas ruas e não lavaste as mãos? Que irresponsabilidade vem a ser essa?
Senti o sangue a gelar. Fiquei totalmente confusa com o esgar de repulsa que a minha própria professora estava a fazer-me. Os sussurros começaram a ouvir-se na sala, encaixando-se com os olhares zombeteiros que muitos dos meus colegas deitavam.
— Vai lavar as mãos e volta só aqui quando estiverem muito bem desinfectadas. Nunca mais mexas nisso, a não ser que queiras apanhar alguma doença. Que coisa mais imbecil a que fizeste, sinceramente.
Nisso. Como se tivesse arrombado um laboratório de microbiologia e brincado com amostras cheias de ébola. Como se tivesse mexido em algo e não em alguém.
Saí, completamente destruída por dentro. Para trás deixei a maior parte dos meus colegas a rirem-se e a comentarem a minha atitude ridícula e anormal, que foi a de ajudar um cão.
Imagem | Lisa Fotios
Imagem | Lisa Fotios
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